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segunda-feira, 27 de junho de 2011

UFBA 2007.1

Se perguntarmos hoje a um homem de cultura mediana o que ele entende por
arte, é provável que na sua resposta apareçam imagens de grandes clássicos da
Renascença, um Leonardo da Vinci, um Rafael, um Michelangelo: arte lembra-lhe
objetos consagrados pelo tempo, e que se destinam a provocar sentimentos vários
 e, entre estes, um, difícil de precisar: o sentimento do belo.
Essa resposta fere, sem dúvida, alguns aspectos importantes da obra de arte.
A objectualidade: um quadro, por exemplo, é um ser material. E o efeito psicológico:
uma obra é percebida, sentida e apreciada pelo receptor, seja ele visitante de um
museu ou espectador de um filme.
 Mas, é necessário convir, o nosso interrogado é sempre um homem do seu
tempo, alguém que nasceu e cresceu entre os mil e um engenhos da civilização
industrial, e que tende a ver em todas as coisas possibilidades de consumo e fruição.
Ter ou desejar ter uma gravura, um disco ou um livro finamente ilustrado é o seu
modo habitual de relacionar-se com o que todos chamam de arte. Tal comportamento, embora se julgue mais requintado que o prazer útil de usar um bonito liquidificador,
afinal também está preso nas engrenagens dessa máquina em moto contínuo que é
o consumo, no caso o mercado crescente de bens simbólicos.
Constatar, porém, o uso social da pintura e da música, ou a sua função de
mercadoria, não deve impedir-nos de ver antropologicamente a questão maior da
 natureza e das funções da arte. É preciso refletir sobre este dado incontrolável: a
arte tem representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser
humano. Atividade que, ao produzir objetos e suscitar certos estados psíquicos no
receptor, não esgota absolutamente o seu sentido nessas operações. [...]
                                                        [...]
A arte é um fazer. A arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se
transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Nesse sentido, qualquer
atividade humana, desde que conduzida regularmente a um fim, pode chamar-se
artística. Para Platão exerce a arte tanto o músico encordoando a sua lira quanto o
político manejando os cordéis do poder ou, no topo da escala dos valores, o filósofo
que desmascara a retórica sutil do sofista e purga os conceitos de toda ganga de
opinião e erro para atingir a contemplação das Idéias.
A arte é uma produção: logo, supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do
não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos. Techné chamavam-na
os gregos: modo exato de perfazer uma tarefa, antecedente de todas as técnicas
dos nossos dias.
 A palavra latina ars, matriz do português arte, está na raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes de um todo. Porque eram
operações estruturantes, podiam receber o mesmo nome de arte não só as atividades
que visavam a comover a alma (a música, a poesia, o teatro), quanto os ofícios de
artesanato, a cerâmica, a tecelagem e a ourivesaria, que aliavam o útil ao belo. Aliás,
 a distinção entre as primeiras e os últimos, que se impôs durante o Império Romano,
tinha um claro sentido econômico-social. As artes liberales eram exercidas por homens
livres; já os ofícios, artes serviles, relegavam-se a gente de condição humilde. E os
termos artista e artífice (de artiflex: o que faz a arte) mantêm hoje a milenar oposição
de classe entre o trabalho intelectual e o trabalho manual.
 O pensamento moderno recusa, não raro, o critério hierárquico dessa
classificação. O exercício intenso da criação demonstra, ao contrário, que existe uma
atração fecunda entre a capacidade de formar e a perícia artesanal. No pintor
trabalham em conjunto a mão, o olho e o cérebro. No mais humilde dos trabalhadores
manuais, adverte Gramsci, há uma vida intelectual, às vezes atenta e aguda, dobrando
e plasmando a matéria em busca de novas formas, ainda que, no jogo social, o artífice
não receba o grau de reconhecimento prestado ao artista.
Platão viu luminosamente a conexão que existe entre as práticas ou técnicas e
a metamorfose da realidade:
“Sabes que o conceito de criação (poiesis) é muito amplo, já que seguramente
 tudo aquilo que é causa de que algo (seja o que for) passe do não ser ao ser é
criação, de sorte que todas as atividades que entram na esfera de todas as artes são
criações; e os artesãos destas são criadores ou poetas (poietés)” (O Banquete).
O conceito de arte como produção de um ser novo, que se acrescenta aos
fenômenos da natureza, conheceu alguns momentos fortes na cultura ocidental. E
tomou feições radicais na poética do Barroco, quando se deu ênfase à artificialidade
da arte, ou seja, à distinção nítida entre o que é dado por Deus aos homens e o que
estes forjam com o seu talento. No século XX, as correntes estéticas que se seguiram
ao Impressionismo levaram ao extremo a convicção de que um objeto artístico obedece
a princípios estruturais que lhe dão o estatuto de ser construído, e não de ser dado, “natural”. Matisse, abordado por uma dama a propósito de um quadro seu com o
comentário “Mas eu nunca vi uma mulher como essa!”, replicou, cortante: “Madame,
isto não é uma mulher, é uma tela”.

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. 7. ed. São Paulo: Ática, 2004. p. 7-14. (Série Fundamentos).

Questão 01
No texto, o autor
(01) define como arte as obras clássicas e consagradas, capazes de despertar o sentimento do
belo.
(02) critica a concepção de arte que não considera o aspecto material da obra artística nem seu aspecto psicológico.
(04) conceitua a arte como representação, ação, produto e criação.
(08) valoriza a atividade artística em detrimento do trabalho artesanal.
(16) afirma que, ao criar uma outra realidade, o artista distancia-se do contexto social que lhe é
próprio.
(32) distingue o objeto não-artístico do artístico através do grau de talento de seu criador.
(64) questiona a distinção entre arte e artesanato, uma vez que se fundamenta em uma discriminaçãoeconômico-social.


Questão 02
De acordo com o texto, pode-se afirmar:

(01) O suposto entendimento da arte atribuído ao “homem de cultura mediana” (l. 1), no primeiro parágrafo, é discriminador, por ser um julgamento que privilegia um certo tipo de arte.
(02) A obra de arte deve ser vista de maneira objetiva, evitando-se reações sentimentais, o que está evidente nos parágrafos segundo e terceiro.
(04) O valor utilitário da arte, referido no terceiro parágrafo, atende a uma sociedade que ignora a natureza do objeto artístico, vendo-a em outra direção: a do consumo.
(08) O vocábulo “arte” (l. 35), no sétimo parágrafo, estabelece com os termos “música, poesia,
teatro” (l. 38) e “cerâmica, tecelagem e ourivesaria” (l. 39) uma relação classe-elementos.
(16) A idéia de que a obra de arte deve ser fiel à realidade está trabalhada no último parágrafo.
(32) A fala de Matisse, no último parágrafo, deixa entender que, para ele, uma obra de arte constitui em si mesma um objeto extra, que deve ser examinado como algo singular.


Questão 03
Estão coerentes com o texto as seguintes proposições:
(01) O autor contesta o pensamento de Platão no que concerne à distinção entre arte e ofícios.
(02) O quinto parágrafo inicia-se com uma afirmação cuja justificativa se estende ao parágrafo
seguinte.
(04) Os gregos valorizavam a técnica com a qual o artista construía sua obra.
(08) Os romanos ressaltaram a atividade de composição das partes, que o artista realiza para criar sua obra.
(16) As idéias são desenvolvidas, no texto, seguindo uma seqüência temporal que vai do passado ao presente e retorna ao passado.
(32) O autor parte de uma generalização sobre a arte, apresenta, em seguida, argumentos
particulares historicamente consolidados e finaliza seu texto com um raciocínio que destaca a
atividade de criação na arte.

Questão 04
Constitui uma afirmação que se relaciona adequadamente com o texto:
(01) O autor, no primeiro parágrafo, apropria-se do ponto de vista de um enunciador hipotético.
(02) A declaração do segundo parágrafo pressupõe uma dupla valoração para a obra de arte: a material e a espiritual.
(04) A expressão “objetos consagrados pelo tempo” (l. 4) constitui uma referência a “imagens de grandes clássicos da Renascença” (l. 2-3).
(08) A palavra “Mas” (l. 10) não refuta o que se enuncia nos dois primeiros parágrafos; contextualiza o que antes foi declarado.
(16) A expressão “não só” (l. 37) e a palavra “quanto” (l. 38), no contexto da frase, introduzem idéias que se excluem.
(32) Os termos “Aliás” (l. 39) e “ou seja” (l. 61) equivalem-se no contexto e antecedem uma retificação de enunciados.
(64) Os verbos abordar e replicar, nas respectivas formas “abordado” (l. 65) e “replicou” (l. 66),
antecedem falas referidas no texto.



Gabarito:

01)    01 + 02 03
02)    01 + 04 + 16 + 32 53
03)    01 + 04 + 08 + 16 + 32 61
04)    01 + 02 + 16 19

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